Título: A Cidade da Garoa 2
Personagens: São Paulo-centric, plus cameos e participações especiais
Rating/Advertência: Same as before. Palavrões, esquisitices e os pensamentos de São Paulo e nomes humanos pros estados, era necessário
Sumário: No qual fica-se sabendo se Sampa conseguiu ou não passar um Natal feliz, entre outras coisas.
Eram três da manha, apenas duas horas depois que ele tinha saído do trabalho, e Paulo estava deitado de costas no meio do Parque Trianon.
Nessa época de festas, ele sempre tomava muito cuidado - mais do que certas pessoas que ele conhecia, pelo menos - para não demonstrar nenhum tipo de favoritismo. Parque Trianon, Parque Ibirapuera, Parque das Bicicletas - com certeza gostava de todos eles. De alguma forma, cada um de um jeito, todos eram ele, ele era as crianças que brincavam, vestibulandos que estudavam (ô, fase ruim), esportistas que corriam, viciados que fumavam, policiais que faziam a ronda, ele era todo mundo.
E nem era só os parques de sua capital, de sua São Paulo querida, era também as cidades do interior, era cidades quase tão grandes (beeeeeeem quase) e cidades bem menores. As vezes, ele era quase tão caipira quanto seus irmãos (beeeeeem quase também).
Mas agora ele estava ali, no seu Parque Trianon que parecia mágico com toda a iluminação, agora estava na sua Avenida Paulista (e ele era a Avenida Paulista), na frente do seu Vão do MASP (e ele era o Vão do MASP), a poucos metros de seu arco, seu novo lindo arco que ia de lado a lado da sua avenida e que ele tinha decorado sozinho.
E ele era o seu arco.
São Paulo respirou fundo, puxando o celular do bolso e levando-o até a orelha. Depois do terceiro ou quarto toque, escutou a voz sonada de Paraná:
-Deus do céu, por que é que você está me ligando? Aconteceu alguma coisa?
Paulo ia responder, mas lhe ocorreu que tinha que conferir uma coisa de extrema urgência:
-Você está sozinho?
Paraná demorou a responder. Quando disse, sua voz parecia querer abrir caminho pela linha telefônica para apertar o pescoço de Paulo:
-Olha, como estamos perto do Natal, eu vou fingir que isso aqui é um sonho. E não que você me acordou no meio da noite por causa de uma crise de ciúmes.
Ou seja, ele estava sozinho - e com sono -, senão teria sido mais maldoso e respondido que não, em vez de ficar nesse charme de fazer mistério.
Ótimo.
Paulo se sentou no chão, dobrando os joelhos e apoiando os cotovelos sobre eles:
-O que você vai fazer no Natal?
-Vou cuidar da minha vida.
-Vem cuidar aqui.
-Ah, então você não está me ligando por causa de uma crise de ciúmes. Você está ligando porque percebeu a mancada que deu na última reunião.
-EU dei mancada? Só faltou vocês me botarem para fora!
Paraná começou a rir do outro lado:
-Sabe o que foi ridículo? - ele disse, mais acordado - Você ir embora de helicóptero. Depois de ficar duas horas falando que não consegue viajar de um lado para o outro.
-Eu nunca disse que eu não consigo, disse que eu não quero. Porque cansa. Mas não foi por isso que eu liguei, de qualquer forma, o amigo secreto não iria ser no Natal, iria? Não, não iria. Eu liguei para perguntar se você não quer vir para cá.
-Eu iria, meu irmãozinho, mas agora já preparei o meu Natal Solidário.
-Que porra é essa?
-É uma coisa super legal - ele disse, soltando um longo bocejo - a gente aquí enfeitou um monte de lugares, todos espalhados pela minha casa. E na maioria dos semáforos vai ter gente vestido de Papai e Mamãe Noel.
Paulo torceu a boca, deixando escapar um grunhido.
-Enfeitou a Ópera de Arame também?
-Não, essa não. Mas enfeitei o Jardim Botânico, o parque - e começou uma LONGA E INTERMINÁVEL E CHATÍSSIMA LISTA DE ENFEITES ESPALHADOS POR CURITIBA.
Paulo estava para se matar de tédio, o dia já estava quase amanhecendo, daqui a pouco ele teria que se aprontar para ir trabalhar de novo, quando Paraná finalmente terminou de falar todos os lugares superdivertidos que todos os paranaenses tinham enfeitado para esse final de ano.
-Parece muito bonito - Paulo comentou, após escutar o final do inventário - espero que vocês se divirtam bastante.
-Ah, com certeza - e, pela tom da voz, Paraná estava sorrindo - se você quiser, pode vir para cá. Aí você pode ver pessoalmente.
-Não sei se eu já comentei, mas eu tenho que trabalhar.
-Então tá bom. Espero que você se divirta bastante também.
-Pode crer que eu vou - Paulo disse, e desligou o celular, deitando de novo.
Manhã do dia vinte e três.
Droga.
Ele não queria… não devia, tinha jurado que não ia- ela era a causa primária de todos os seus problemas, desde a catapora até o tráfico, e ela… argh, ele tinha jurado para si mesmo que não ia, mas mesmo os melhores planos dão para trás, e engraçado era que ele era a cabeça mandando parar e também era a mão ligando o celular de novo, ele era tudo aquilo, os primeiros raios iluminando o parque e a rua e a calçada e o arco e ser tudo as vezes era solitário - o que não era um problema, era só - só solitário, era tudo isso, ele queria- as vezes ele queria-
-Faaaaaaaaala, mané! - o berro nada sóbrio de Rio ao telefone não só lhe deu um enorme susto como soterrou toda a profundidade de seus pensamentos.
Paulo afastou o celular da orelha e sentou de novo, já sentindo a familiar raiva que sentía quando falava com aquela besta.
-Oi, gata. Já está bebendo logo nessa hora?
-Claro, foi nessa hora que eu acabei de salvar a pátria, não foi? Hora de festejar!
Paulo abriu um meio sorriso:
-Você salvou a pátria? E por que eu não fiquei sabendo disso?
-Porque você é um a-li-e-na-do - ela devia ter se achado muito inteligente falando assim, mas só parecia que estava tentando não embolar a palavra na língua - Senão saberia que, cada vez que eu salvo a minha galera aqui, estou protegendo o seu rico traseiro.
-Beleza, meu rico traseiro agradece. Mas, Rio, eu não te liguei para isso - ele parou por alguns segundos, esperou uma interrupção, não veio nada, então continuou - Você não quer vir para cá?
Ela demorou um pouco a responder e, por alguns segundos, Paulo só pôde escutar o som de sua respiração na linha.
A respiração de Rio, o cheiro de Rio, lembrava a praia, o ar marítimo, mormaço, conchinhas, ondas arrebentando contra a areia, céu estrelado.
Praia também lembrava Bahia, aquela praia, sem carros, sem poluição, estrelas que ele nunca tinha visto (“claro que viu, Paulinho”, ela respondeu quando ele comentou “vai dizer que você já nasceu cheio de prédios?”), e ele não queria pensar nisso agora, não quando ele estava sendo a sua capital e a sua Avenida Paulista e o seu arco tão bonito e enfeitado.
-Não tou dizendo para você passar a semana aqui - Paulo disse, apertando a própria testa e fechando os olhos - eu sei que você quer ficar aí “com a sua galera”, mas é só- só amanhã, Rô, não precisa ficar nem até a hora da ceia, você só vem…
…e eu te mostro a minha casa, o meu arco que eu enfeitei sozinho, aí a gente se fala Feliz Natal e eu penso se vou para Brasília no dia primeiro.
Contra toda a expectativa, Rio respondeu:
-Pode ser hoje?
Paulo até abriu os olhos:
-O quê?
-É, em vez de amanhã. Eu vou praí agora. Pode ser?
-Pode, claro - Paulo ficou tão espantado que até se levantou - Você… você pode sair daí assim?
-Agora sim - Rio disse, e sua voz vinha com uma risada levemente assustadora - esse pardalzinho aqui não pia mais, mas o milharal ainda tem espiga. Se é que me entende.
-Er… sim. Perfeitamente. E onde você quer que eu te busque?
-Pode ser na rodoviária mesmo - ela disse, a voz voltando ao tom preguiçoso de sempre. Então, dando outra prova da lógica carioca, Rio explicou - Porque aí eu vou dormindo no ônibus e dou uma descansada.
-Tá bom, princesa. E que horas você vai sair daí? Porque eu não estou no clima de ficar esperando feito um otário até sabe Deus quando.
-Ai, que estresse. Vamos fazer assim, gato, quando eu tiver o horário do busão, eu te ligo, tá? Beijo.
Ela desligou antes que ele pudesse responder, e Paulo não se incomodou nem um pouco. Ele guardou o celular no bolso e saiu do Parque, voltando para a Avenida, e naquela hora da manhã o arco não brilhava, mas estava ali, e Rio estava saindo de Copacabana e indo ali só para vê-lo, e, meu, isso é muito, muito bom.
Dia vinte e três à tarde e, como Paulo era tanto quem se matava de trabalhar - centenas e centenas de pessoas que saíam de casa antes do nascer do sol e só voltavam no meio da noite, vindo por cima e por baixo da terra - quanto quem tinha acabado de receber férias escolares - centenas de escolas, faculdades, cursos, fechando as portas até meados de fevereiro ou março -, pôde se dar ao luxo de sair no horário, até receber a ligação de Rio e ouvir que ela chegaria as seis da tarde.
O que com certeza significava, no mínimo, sete e meia.
Mas mesmo para Paulo era duro ser São Paulo, então antes de cinco e quarenta ele estava na rodoviária, esperando na frente do galpão de desembarque. Quando deu seis e meia ele se cansou e ligou para Rio, despejando nela uma porção de palavrões e meu, isso não se faz, puta falta de consideração, até que ela desligou na sua cara e Paulo decidiu dar uma volta pela rodoviária.
Ela estava completamente abarrotada de gente - até aí, sem problema - querendo ir embora.
E isso não era legal.
Paulo torceu a boca, apertando os próprios braços (ainda por cima, o ar condicionado ali estava muito forte, para quê deixar tanto frio assim?).
As pessoas arrastavam malas para cima e para baixo e… meu.
Paulo também era isso, não era? Esse arrastar de malas, esse ir embora, essa pressa de sair e esvaziar a cidade, sua cidade - ele era isso, era sair e era ficar, era uma estrada lotada e era uma cidade vazia.
No meio da bagunça ele viu Bahia, lá longe, apressada em sua própria calmaria, comandando um grupo de setenta pessoas, todos indo comprar passagem para a praia.
-para aquela praia, aquela praia sem carros, sem poluição, aquele lugar que Paulo tinha conhecido há tanto tempo e visto tantas estrelas, e ali estavam os vinte e sete, jogando bola e trapaceando e brigando, e de repente ele ficou engasgado porque era de longe o lugar mais lindo que ele já tinha visto-
Mas ele não ia pensar em nada disso agora.
Paulo olhou no relógio de pulso e depois no relógio do celular e, bom, agora já era sete e pouco, então ele desceu para o galpão de desembarque de novo.
Foram mais uns dez minutos até Rio chegar, sem nenhuma metralhadora à vista, as alças do biquíni aparecendo por baixo das alcinhas da blusa. Ela estava com uma mochila surrada pendurada sobre um ombro, o cabelo preso num coque desalinhado, e bebia água de coco de caixinha.
Assim que desceu do ônibus, despediu-se DO MOTORISTA COM DOIS BEIJINHOS NO ROSTO, jogou a caixinha de água de coco no lixo e então foi até Paulo.
Ele ganhou um beijo na boca e um puxão de orelha.
-Isso foi por você ter sido tão ridículo na última reunião - ela disse, depois que se afastaram - Agora cadê o seu carro?
-Que carro? - Paulo se fez de besta, estendendo a mão para ajudá-la com a mochila - A gente vai de metrô. Bem mais rápido.
-De metrô? - Rio até recuou um passo, sem largar a mochila - Você ficou LOUCO? E se a galera me estuprar?
Até quem estava a um quilômetro de distância se virou para ver os dois, e Paulo se sentiu enrubescer até o último fio de cabelo:
-Deus do céu, Rosana - ele sempre a chamava de Rosana quando os dois estavam tentando se passar por pessoas normais - quantas vezes eu tenho que falar que aqui não é aquele antro onde você mora? Ninguém vai nem chegar perto de você!
Rio, Rosana, estreitou os olhos, mas não respondeu. Era de se admirar que alguém com tão poucas roupas como ela (mini blusa, mini saia, mini cérebro) fosse tão preocupado com ASSÉDIO NO METRÔ, mas, para aquela doida, isso era tão sério quanto os traficantes que estava enfrentando em sua terrinha.
Mas Paulo não queria pensar nisso também.
Enfim, os dois pegaram o metrô e nem estava tão lotado assim - não com todo mundo indo embora desse jeito - mas, claro, também não tinha onde se sentar. Paulo apoiou as costas contra a parede (fisicamente, isso diminuía em muito as chances de ele se estatelar no chão), e Rosana apoiou as costas contra o seu peito, encostando a cabeça sobre seu ombro esquerdo e abraçando com força a mochila contra o corpo.
Paulo virou os olhos e depois cruzou os braços sobre os ombros dela, dando-lhe um beijinho no rosto, perto dos olhos.
-Ninguém vai te assediar, sua histérica. Até parece que nunca andou de metrô na vida…
-Fica na sua, Paulo. Se você tivesse vindo de carro-
-Você ia reclamar do trânsito.
-Essa sua cidade é fogo, hein? Deus me livre.
Paulo não respondeu, sem ânimo de argumentar com aquela mula. Só de castigo (porque a idéia inicial era descer o mais perto possível do seu arco), desembarcou com ela logo no começo da Avenida Paulista.
Eles andaram um pouco, falaram do tempo, do calor, da Copa do Brasil, do preço dos alimentos, do ano que tinha passado, do ano que estava vindo, discordaram em tudo, brigaram, e chegaram na parte das luzes.
Rio olhou em volta, de um lado da calçada para o outro, e acabou assentindo:
-Olha, até que ficou legal o que você fez aquí. E eu achando que você ia ser unha de fome e não iria enfeitar nada.
-É, mas você só achou isso porque é besta - Paulo respondeu, mas estava sorrindo - porque eu sempre enfeito a minha casa no Natal.
Rio não respondeu, mas dava para ver que ela tinha gostado. Os dois estavam quase no arco, mais alguns blocos e chegariam ali (só que já tinham visto e ela já tinha elogiado e até batido palmas), quando Rio viu a neve falsa que um dos bancos tinha colocado sobre o telhado e insistiu para Paulo bater uma foto:
-É neve - ela disse, os olhos brilhando - vai, pede para aquele amigo- não, deixa que eu peço, você é muito antipático. Amigo, você pode bater uma foto da gente? Mas tem que aparecer a neve.
O amigo aceitou a câmera - e Paulo torceu para ele não fugir com ela, porque isso seria a maior vergonha - e então Paulo abraçou Rosana por trás, abraçou com tanta força que ela perdeu a pose, caindo na risada, e a foto saiu uma merda, ele fechou os olhos para beijar o rosto dela e Rio saiu gritando.
-Viu como você não precisava reclamar tanto? - Paulo perguntou, abraçando-a pela cintura depois que Rio pegou sua câmera de volta - Nem doeu vir para cá, doeu?
Rio ergueu uma sobrancelha, um meio sorriso brincando nos lábios:
-E quando foi que eu reclamei? Você me chamou e eu vim.
-É, mas vocês sempre ficam-
Um celular começou a tocar nessa hora e Paulo resmungou oh, ótimo, puxando o seu do bolso da calça.
Nada.
Ele franziu a testa, olhando para Rio.
-Ué, Rô, será que é o seu?
Ela, que até então estava esperando ele atender, deu um tapa na própria testa e puxou um puta walkie-talkie da mochila:
-Ai, cara, eu nunca decoro a campainha dessa coisa - e então, colocando o fone no ouvido, engrossou a voz a nível assustador - Jóia Imperial na escuta, câmbio.
Paulo arregalou tanto os olhos que eles até ficaram secos. Do outro lado só deu para ouvir um chiado, então Rio apertou os lábios, assentiu com a cabeça, e respondeu:
-Mas o professor já está na sala? Eu tinha acabado de receber um passe livre.
Mais chiado, Rio olhou para ele, um longo olhar sentido e Paulo mordeu o lábio, desviando o olhar para o chão.
-Tudo bem - Rio de novo - mas o Papai Noel precisa de um trenó. Câmbio.
Ela desligou o walkie-talkie e o jogou dentro da mochila. Paulo ainda estava encarando o chão quando Rio passou a mão por sua nuca, puxando-o até que suas testas se encostaram.
-Eles acabaram de encontrar outro ponto - ela disse, massageando com a ponta dos dedos o seu pescoço - Eu tenho que voltar.
Cheiro de praia, estrada lotada, cidade vazia.
Paulo assentiu, ainda sem olhar para ela.
Mas ele estava no controle, claro, sempre, então se endireitou, afastou a cabeça e respirou fundo para perguntar se ela queria que eles voltassem de táxi para a rodoviária. Nessa hora, um barulho enorme e facilmente reconhecível cortou a noite paulista, arremessando uma longa escada de corda para Rio.
-Você devia vir no dia primeiro - ela disse, segurando um degrau com as duas mãos e encaixando os pés em outros dois.
Paulo se afastou alguns passos, até quase cair sentado no chão, e o helicóptero puxou Rio para cima.
E não havia nada de ridículo em ir embora de helicóptero. Nada de ridículo mesmo.
Era dia vinte e quatro pela manhã, então era dia vinte e quatro pela tarde e depois dia vinte e quatro pela noite. Paulo tinha acordado cedo, tinha trabalhado até meio-dia - porque ele era quem dirigia os ônibus e controlava os metrôs em revezamento, era quem precisava estar no trabalho e quem podia ficar em casa, era semáforos que insistiam em fechar para controlar um trânsito fácil, simples, vazio, era um ar quente e pesado e uma longa noite sem estrelas.
Não quis voltar de ônibus para casa, nem de carro ou táxi. Ele veio andando e ignorou as ligações de Paraná e Rio (ela devia ter ligado a cobrar), bem como a de todos os outros. Desde ontem a noite tinha pensado em chamar qualquer outra pessoa, mas, como NINGUÉM VIRIA MESMO, acabou metendo na cabeça de uma vez por todas que passaria o Natal com a sua galera.
É isso aí.
Quando Paulo finalmente chegou na sua avenida - e ele com certeza não estava em seu melhor estado, suado e cansado e sujo daquele jeito - já era noite e ela estava toda brilhante, toda colorida. Algumas pessoas estavam nos barzinhos em volta, outras em suas casas, mas Paulo sabia - ou tinha certeza, ou achava, ou queria - que assim que acabasse a ceia elas sairiam para a rua e iriam…
Alguma coisa.
Olhar o céu.
Olhar o arco.
Garoar.
Ele andou até chegar ali, no meio do canteiro bem embaixo de seu arco - e ele era o arco - e se agachou, sem sentar, só agachou no chão, abraçando os joelhos e olhando o asfalto.
E ele era o asfalto.
Essa posição era tão parecida com aquela em que ficara na praia, no lugar mais lindo que já vira na sua vida, que, quando ouviu a voz de Bahia, Paulo nem estranhou.
-Ó, meu rei, você vai ficar aí? Não vai acabar sendo atropelado não?
Nem estranhou por dois segundos.
Então ficou tão espantado que se levantou, erguendo as sobrancelhas:
-Babi? O que você- você perdeu o ônibus?
Ela sorriu, os cabelos caindo em trancinhas até o meio das costas. Num nível da consciência, Paulo se perguntou se ela não teria trocado as bolas e confundido o Natal com o Ano Novo, já que estava toda de branco.
E, meu.
Para quê usar branco no Natal?
Fora isso, Babi - que era como Paulo a chamava quando os dois estavam tentando se passar por pessoas normais - segurava um embrulho em suas mãos.
-Era para eu ter te entregado antes - ela disse, entendendo-o para ele - mas aconteceu que eu perdi. Aí, quando achei, eu não te encontrei mais.
Paulo aceitou o presente, faltavam dois minutos para ser Natal, e suas mãos não tremiam, ele estava no controle, claro, sempre, forte e inabalável.
-Então você saiu de Salvador…
-Para te entregar, Paulinho. Eu fiquei muito feliz por ter tirado, mas aí eu fiquei muito triste que você não ia estar com a gente no dia primeiro e eu teria que sair de casa, mas aí eu fiquei feliz que ia poder ver isso aqui - e ela apontou o arco.
Nessa hora começou a garoar, merda, bem de leve, mas, merda, a querida Babi era tontinha, mas até ela ia perceber, não ia?
-Você quería ver?
-É, eu vi você montando esse negócio. Daí eu adiei a minha viagem para amanhã.
Paulo passou os dedos pelo envelope, meia noite de Natal e os dois molhados embaixo de seu arco.
-Mas eu… Babi, eu não estou participando do amigo secreto esse ano…
Ele achou que isso ia deixar Bahia envergonhada, já que ela obviamente tinha comprado o presente para a pessoa errada, mas, em vez disso, ela ficou irritada.
Do seu jeito.
-Ah, não vai me dizer que aquela abestada da Rio não te entregou o seu papel! Você ainda não sabe quem você tirou?
-Mas eu- lembra, eu saí antes. Eu falei que não ia-
-É, mas aí eu rodei a baiana com eles - ela pegou o celular de Paulo de seu bolso e começou a discar o número de Rio - aí essa tonta da sua amiga tinha que ter te entregado.
Rio devia ter atendido, porque Bahia começou a trocar umas ofensas com o telefone. Paulo olhou em volta, noite de Natal, algumas pessoas - a sua galera - já estava saindo para a avenida, apesar da garoa.
Ele voltou o olhar para o presente e alisou o papel com os dedos antes de começar a desgrudar a fita adesiva.
Bahía estava desligando o celular nessa hora, a expressão bastante confusa.
-Essa é muito boa - ela pôs as mãos na cintura - a Rio também não sabe. Vixe, quem será que ficou com o seu papel?
Dentro do embrulho estava um quadro, pintado sobre azulejo, da praia, aquela, o mar azul claro debaixo de um céu azul escuro pontilhado de estrelas.
“Para meu Amigo Secreto, o Morro de São Paulo
P.S será que eu te falei que esse era o nome da sua praia? ♥”
Paulo passou a ponta dos dedos sobre o mar - o seu Morro -, a areia, o céu. E Bahia era o mar, Bahia era aquele lugar sem carros nem poluição - mas Bahia também era uma estrada de volta, Bahia era aquela presença em sua casa e Bahia era a ausência no final do ano, e São Paulo era turistas que viajavam e retirantes que voltavam, e os dois eram trânsito na estrada e morros e arcos e cidades vazias e ida e volta e Natal e Ano Novo.
Babi ainda estava divagando:
-Jesus, Paulinho, sei lá quem você tirou. Você vai ter que arranjar um presente unissex, pode ser?
Isso fez Paulo rir, e seus olhos não estavam brilhando e não estava garoando, no controle, sempre, e ele segurou o rosto de Babi:
-Eu disse que não ia participar… vocês colocaram meu nome contra a minha vontade… e nem sabem quem foi que eu tirei?
-Isso mesmo - ela assentiu, nem um pingo de vergonha - culpa daquela tonta.
Paulo não respondeu, inclinando a cabeça para beijar os lábios de Babi. Ela se espantou no início - um tiquinho - mas depois o abraçou de volta, molinha, segurou sua cintura e subiu as mãos por debaixo da camisa social.
...porque, francamente, esse pessoal que vive na praia não sabe se comportar na cidade grande.
De qualquer forma, ninguém estava olhando para eles então Paulo não ficou com vergonha, ele só sorriu no meio do beijo e depois, quando já passavam das duas da manhã e ele e Babi andavam de mãos dadas procurando qualquer lugar para comerem, ele se perguntou que cara faria quando visse aquele pentelho do Brasília no dia primeiro, pensou em como diría para Bahia que ela poderia ter guardado o seu presente até a hora certa, pensou no que poderia comprar que pudesse servir de presente tanto para Catarina quando pro Amapá.
Para não falar em Pernambuco.
Então pensou que não dava, que o único jeito era comprar um vale presente em qualquer lugar e esperar pelo melhor. Isso, apesar de ser um bom plano, com certeza ia causar a maior briga e a culpa ia ser sua de novo. Então foi aí que ele pensou, um pouco antes de beijar Bahia de novo, em como até que gostava de sua familia, mesmo que infelizmente TODOS OS SEUS IRMÃOS FOSSEM TÃO BURROS.
Mas, em suma, tinha sido um natal feliz.
the end