THE MUSIC BOX DIARIES
(inspirado terrivelmente por colleen)
ato um . your heart is so loud
mas, de certa forma -- ele guardava as mais aterrorizantes formas de vida em seu peito; acidentes ansiosos para acontecer, monstros de armário já mofados, incrustados no tecido hematopoético, incendiozinhos; e ele sempre caminhava devagar ao afastar-se dela. seu coração batia tão alto! ele nunca poderia deixar que ela o escutasse, aquelas violentas sístoles e diástoles que ecoavam pela manhã loira de nuvens aquareláveis em ais implícitos.
então: tomava agora seu café extra grande silenciosamente.
que fazer de toda aquela vida tão arbórea, tão coadjuvante? e de todas aquelas meninas-sorriso que penduravam-se nele, suspirando, como laços e bolas de natal? faltava-lhe porém a estrela no ápice e sabia bem que era ela. ela: que se movia como quem hesita, pensando cada gesto antes de torná-lo real, que fazia entender-se sem dizer palavra alguma. portanto, sabia que ela o amava. ora, até mesmo os vidros das janelas, os paralelepípedos sabiam.
mas nada dizia. mantinha segredo de tudo, como se cada célula de si pudesse revoltar-se contra a felicidade efêmera de um pequeno amor ideal, aquele exerto de nuvem que o devorava como picolé quase todos os dias -- sem saber exatamente o porquê.
tudo aquilo
e tudo o que ela era --
faziam-no caminhar tão devagar.
mas: olhou para os lado: tudo parecia tão diferente do que há alguns meses, tão dissonante. e ali estava ela, sentada no outro banco, ponderando como se a vida fosse balé de cisnes mortos, as penas acumulando-se sob os pés, os ossos pneumáticos visíveis sob a pele.
era bom; e era bom manter aquela distância. aquele som, ela faria-se em poça de lágrima, se o ouvisse -- era uma vida tão triste, quase estática, as cortinas que o vento não ousava embalar em sua valsinha. assim, heroicamente, tendo em mente a sobrevivência dos mais queridos sonhos seus e dela, ele preferia permanecer inalcançável a seu lado (o coração de caixinha-de-música incorrigível fazendo algazarra dentro da caixa torácica, ávido para atirar-se nas mãos dela), engolindo aqueles suspiros em seco, sempre parado no ponto-cego da menina com asas pálidas de jubileu incandescente.
ato dois . the heart harmonicon
mas então que fosse hoje! agora mesmo! sim, confessaria finalmente. diria: olá, bom dia, como passa? oh, a propósito, eu a amo. e ela deveria dizer o mesmo, sorrir comovida, levar a mão ao peito afetadíssima como uma diva de cinema clássico. ela faria isso, é claro; pois o amava também e todos sabiam e hoje era o dia perfeito para não ser um dia terrível como ontem, quando imensas gotas atiravam-se de nuvens grotescas como feridas purulentas em um céu macio e patético. não mais manter segredo; a situação toda acumulava-se em suas veias, prestes a eclodir como um ovo de mariposa; como um vulcão.
olhando para trás, nas últimas semanas limitava-se a estar parado sempre no mesmo lugar, esperando-a passar por ali, ir e voltar e ir e voltar novamente fingindo-se completamente alheia a ele, cantarolando uma cançãozinha inventada de sopro de montanha que era; como um ritual girassolístico, quase todas as manhãs. ela caminhava com as mãos nos bolsos -- e ele podia sabê-la perguntando-se se ele a notava, quando passava; e ela chorava bem baixinho.
oh, pobre menina querida, sempre rindo tão alto e saltando de lá para cá, invisivilíssima a qualquer um que não tivesse muito tempo nos olhos para dedicar-lhe alguma atenção. no mais, não era digna de nota; usava roupas escuras, deitava-se com todos os escritores possíveis em bancos inalcançáveis, uma corrente de cigarros, outra de suspiros. retraía-se de medo do mundo, florzinha de sarjeta fluorescendo com cuidado: nunca uma imposição, nunca um incômodo. enclinava-se servilmente diante de cada ventarola.
mas ele a havia visto e ela parecia digníssima de fina dissecação -- cada membrana de seu coração rubro, ele tinha certeza, guardava os mais admiráveis misteriozinhos que, pulsantes como estrelas, atraíam-lhe terrivelmente. e ela era linda. céus, como ela era linda.
("você é uma lagarta listrada. você parece louca".)
então seria hoje. hoje, agora, agora mesmo, assim que a encontrasse débil e dúbia como sempre, e se casaria com ela, tomaria posse de todas as suas carolinices na primeira chance que tivesse. diria qualquer coisa, um olá que fosse, e seria o bastante. "olá", e eles passariam a existir um para o outro não como um sonho irreal mas como concretitude romântica, motivo de sorrisos solitários nos últimos segundos antes de adormecer. amanhã poderia ser tarde demais: então hoje.
entrou pelo portão com a pressa usual, tropeçando em suas fantasmagorias ainda nem ditas que flutuavam como móbiles diante de si, em tudo o que queria fazer com ela e que estava prestes a finalmente ser.
se ela não estivesse lá, bem, seria outra história.
(e por um segundo pensou que seria realmente melhor se ela não estivesse lá, para culpá-la, oh, aquela menina, por tudo o que não diria.)
mas, com efeito, estava. ave maria cheia de graça o senhor é convosco aproximando-se dela, não, que horrível, era melhor fingir não tê-la visto, mas era tarde porque ela já lhe lançara aquele olhar; aquele, tão característico, surpreso com a existência dele, aquele que diz: "ora! você!".
sejaoquedeusquiser; e que, por favor, ele queira algo bom.
- oi.
céus, tinha dito uma palavra, quebrado um milhão de paredes, arrancado-a da gaiola, voe, voe, e agora ela já havia estourado no rosto da menina, fazendo-a sorrir, como um bloco de ar salgado, marítimo, uma nuvem de sal, mas incrivelmente doce.
- oi.
ele sentou-se a seu lado; os dois pareciam concordar que uma palavra só bastava; e suspiraram juntos
e sorriram
e sorriram.